Estamos acompanhando mais uma vez a mudança do baterista, compositor e escritor para um MOTOCICLISTA.
Neil Peart escreve um artigo para seu site oficial onde conta com detalhes impressionantes como foram suas aventuras de moto pela América do Sul, partindo do Brasil rumo à Argentina e Chile. Uma bela história, importantíssima para os fãs sul-americanos que curtiram as apresentações do power-trio em outubro de 2010.
Temos nossos próprios tipos de pensamento mágico, e o meu me levou a esse "caminho", conforme descrito aqui. Apesar das minhas crenças sobrenaturais não incluírem deuses do céu ou "técnicas de visualização", elas abraçam as perseguições igualmente irracionais de sonhar, ousar e confiar. Essas são as qualidades mais importantes que me fizeram acreditar que poderia ir fazer uma turnê de shows no Brasil, Argentina e Chile de moto.
Quando a turnê sul-americana estava sendo planejada para outubro de 2010, comecei a sonhar em pilotar nela; depois me atrevi a pensar em voz alta e, a partir de então, era uma questão de esperança. Sabia que não ia ser fácil. Meu parceiro de viagens de muitos anos, Brutus, trataria das rotas e logística (até mesmo viajando para o Brasil dez dias antes para realizar um "reconhecimento antecipado") para então pilotar comigo. Para mim, me daria oportunidade de, através das performances com o Rush em São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires e Santiago (para ganhar dinheiro para nosso combustível), preparar minhas duas BMW R1200 GS com novo óleo e pneus, bagagens pesadas, maleta de ferramentas, kit primeiros socorros e galões de gasolina sobressalentes.
Brutus e eu tivemos no passado uma quantidade considerável de aventuras viajando de moto, muitas delas juntos. Sabíamos como nos preparar para uma viagem desse tipo e como improvisar em torno dos obstáculos que poderíamos encontrar pelo caminho. Porém, mesmo assim, também precisaríamos de sorte. É aí que o pensamento mágico entra.
Seria minha primeira vez viajando de moto pela América do Sul, e a primeira vez em que combinava uma "viagem aventureira" com uma "viagem a negócios". Um passeio de bicicleta pela China em 1985 me introduziu nessas viagens aventureiras, me levando a jornadas sobre pedais na Europa, América do Norte e em muitos países da África Ocidental. Em turnês, utilizei bicicletas e motos como "veículos de fuga" durante muitos anos, e até esse momento sempre mantive minhas aventuras separadas das viagens a negócios.
Com as datas na América do Sul se aproximando, admito que ficava cada vez mais nervoso, definindo meus sentimentos como "expectativa e apreensão - em medida mais ou menos igual". Esperança e medo, em outras palavras. Na van do aeroporto para o primeiro hotel em Campinas, perto de São Paulo, sendo conduzido (e escoltado) ao longo de uma estrada escura, senti um pouco de medo. Depois do primeiro show em São Paulo, quando Brutus e eu começamos a viajar sozinhos, parecia que eu estava com um nó no estômago, carregando essa ansiedade comigo ao longo de todo o caminho. Houve muitas vezes em que pensei, "Foi uma má idéia".
Muitos concordaram comigo, sempre achando também que essa era uma má idéia - minha esposa Carrie, por exemplo. Quando ela ficou sabendo dos meus planos em viajar de moto pela América do Sul, ficou chocada e incrédula. Minha mãe não gostou nada. Meu parceiro americano de viagens, Michael, que também descrevo como meu "Diretor de Segurança Interna" (que certamente me inclui) tentou me desencorajar. Meu gerente Ray e meus amigos de banda Alex e Geddy devem ter tido suas reservas, mas sabiamente deixaram as mesmas não ditas (eles sabem que posso ser incrivelmente teimoso, especialmente quando estou perto de agarrar uma má idéia). Os agentes, promotores e membros da equipe devem ter tido preocupação com seus meios de subsistência.
Mas o que eu poderia fazer?
Sério, assim que vi o roteiro, com quatro dias de folga entre os shows do Brasil e Buenos Aires, uma vez que Brutus havia feito alguns rascunhos do trajeto preliminares que determinavam o que poderia ser feito, parecia que eu não tinha escolha. Era um exemplo perfeito do tipo de decisão que se mostrava óbvia para mim: teria quatro dias de folga entre aqueles shows sul-americanos; o que eu poderia fazer de mais excelente nesses quatro dias?
Pilotar minha moto por lá, claro.
Como se fosse tão fácil.
Concordei com meus entes bem-intencionados (e com minha própria preferência egoísta pela sobrevivência) que não iria pilotar no meio de grandes cidades ou até mesmo ir para os estádios gigantes de futebol, onde iríamos tocar. Aparentemente Brutus e eu tínhamos mais do que o tráfego a temer por lá - ladrões, assaltantes ou seqüestradores (Meu Deus!) - então nos organizaríamos sozinhos em algum lugar utilizando esses sites de serviços, entrando e saindo das cidades de van, acompanhados por Michael.
Tudo deveria funcionar desde que nada saísse errado. Esse foi o ato de fé - e pensamento mágico: sonho; coragem; esperança...
Conforme mencionado, Brutus e eu já havíamos compartilhado viagens aventureiras de moto: para o Canadá Ártico, em torno do México, da Europa para o Norte da África e à beira do Saara. E em cada uma dessas viagens, algo inesperado aconteceu - um problema mecânico, mau tempo, um acidente - que nos atrasou por um ou dois dias, mudando nossos planos. Quando uma viagem aventureira é interrompida assim, você pára e lida com o que você tem, fazendo novos planos para se adequar.
Mas não tínhamos nada parecido com flexibilidade nesse momento.
Acerca da "viagem a negócios", tenho pilotado motos entre as apresentações há quatorze anos - centenas de shows e dezenas de milhares de quilômetros - não tendo ainda sequer chegado atrasado para as passagens de som, muito menos para os shows. No entanto, dessa vez não teríamos a "equipe de apoio" de um ônibus ou trailer por perto (seguindo as interestaduais enquanto explorávamos as estradas vicinais). Não teríamos motos sobressalentes, Assistência de Viagens da BMW e lojas especializadas bem localizadas, enfim, não teríamos nenhum desses resgates "fáceis" disponíveis na América do Norte e Europa Ocidental. Ficaríamos muito bem só na nossa cabeça.
Conforme escrevi a Brutus no início, enquanto pesquisava meticulosamente e planejava a viagem (por cerca de seis meses), "Você sabia que muita coisa estava 'andando' nessa nossa pequena aventura, e que NADA poderia dar errado".
É lógico que ele não precisava lembrar, mas talvez declarar isso tão claramente fosse outro tipo de pensamento mágico - um talismã para afastar maus fluidos.
Tivemos um "anjo da guarda" de verdade cuidando de nós. Michael instalou dispositivos de rastreamento por satélite em nossas motos, e enquanto ele viajava pelo ar com a banda e a equipe, poderia nos acompanhar na tela do seu computador seguindo nossas "MIGALHAS DE PÃO" (maneira curiosa que chamam as trilhas eletrônicas que deixamos, um imaginário divertido que por vezes emerge da linguagem da alta tecnologia - contradição que me fascina desde que escrevi a letra de nossa canção "Vital Signs" nesse estilo, em 1980).
Era algo estranho sentir que estávamos sendo observados daquela forma (uma vez por dia eu olhava para o céu, levantava o punho dizia alguns palavrões para o Michael), mas reconfortante também. Se qualquer problema surgisse em nosso caminho, queríamos toda a ajuda que pudéssemos, o mais rápido possível.
No primeiro dia, passando pelo do tráfego intenso de Campinas, senti como se estivéssemos montando dois cavalos através de um vasto rebanho de carros que mais pareciam búfalos, com caminhões se elevando sobre nós como elefantes e enxames de pequenas motocicletas como se fossem mosquitos, zumbindo por toda a parte.
De Campinas para a área do Rio de Janeiro, depois de volta para São Paulo e Sul, viajamos por auto-estradas de quatro pistas, sobretudo por longas distâncias, porque tínhamos um longo caminho a percorrer. Conforme aviso de Brutus, havia muito mais caminhões do que carros, numa relação de aproximadamente dez para um, mas os motoristas pareciam bons e fomos capazes de passar facilmente por essas estradas. No entanto, havia muitos pedágios (quinze em apenas um dia de viagem) e, ao negociar esses, Brutus e eu seguimos o mesmo ritual que sempre faço com Michael nos EUA. Brutus passa na janela do pedágio e eu paro à sua direita. (Dica Roadcraft: Evite a faixa oleosa do meio, onde pingam resíduos de carros e caminhões, especialmente em dias de chuva). Enquanto Brutus pagava ambos os pedágios, o atendente levantava a barreira e me acenava uma vez, e então uma segunda para Brutus - enquanto ele coletava o troco, puxando suas luvas e engatando a marcha na moto.
Longe das auto-estradas (bem, estradas com pedágio), é claro que as coisas ficaram muito mais animadas e pitorescas. Aqui está Brutus na estrada para Petrópolis, uma bela cidade colonial aninhada numa floresta úmida montanhosa ao norte do Rio de Janeiro.
Acho que as coisas foram ficando mais interessantes quando ficamos horrivelmente perdidos - no sul do Brasil, durante o segundo dia de nossa odisséia para Buenos Aires. De volta a Campinas, antes de partimos, Michael e Brutus passaram muitas e muitas horas (e muitas caipirinhas, coquetel nacional brasileiro) trabalhando em nossas unidades de GPS (um trio conhecido como Doofus (Estúpido), Dingus (Bobo) e Dork (Otário) e o programa de computador que mapeia as rotas deles, chamado de Mãe).
Depois de todo esse trabalho online e muitas ligações para o fabricante, as unidades funcionaram bem por 515 quilômetros (322 milhas), de São Paulo à Petrópolis. Em seguida, mais 550 milhas (um longo dia) para o Sul até outra grande cidade, Curitiba. Mas logo após sairmos de lá, o equipamento começou a "se perder". Algo semelhante havia acontecido comigo e com Brutus há alguns anos na Polônia e na Alemanha Oriental. Assim como agora, a linha roxa do nosso percurso permaneceu na tela - não exatamente no caminho em que estávamos, mas tão perto o suficiente que poderíamos navegar por ele. Percebemos que estávamos trafegando por outra área mal mapeada, e os GPS acabariam por nos conduzir corretamente (pensamento mágico novamente).
Sabíamos que durante a maior parte do tempo deveríamos pegar o caminho oeste-sudoeste, em direção ao rio Uruguai. Havia apenas uma ponte naquela parte do país, onde cruzaríamos a mesma continuando a oeste-sudoeste em direção a fronteira com a Argentina. Na medida em que seguíamos juntos, olhávamos ocasionalmente para a linha roxa na pequena tela ou mudávamos para a função "bússola", para nos certificarmos que ainda estávamos seguindo na direção correta. Imaginávamos que não poderíamos ir tão longe de maneira errada.
Até esse ponto. Saindo de uma pequena cidade, o asfalto terminou e seguimos por uma estrada de terra correndo do lado esquerdo de um rio largo de cor castanho-esverdeada. No fim do dia, com cerca de 400 milhas atrás de nós, as sombras cresciam após o Sol ter ido descansar. Ainda não havia ponte à vista - e tão pouco camas para nós. É claro que tínhamos os mapas de papel conosco, mas eles ainda não haviam sido utilizados até aquele momento porque não havia nenhuma cidade, nenhum sinal, nenhum lugar para ir e nenhuma pessoa para perguntar. A melhor idéia que poderíamos seguir era a de fazer nosso caminho em direção ao norte, onde provavelmente teríamos asfalto, o que nos tiraria de lá. O nó no estômago foi crescendo, e eu disse para mim mesmo, naquelas palavras grosseiras, "Estamos fodidos".
Mesmo após encontrarmos nosso caminho para a estrada pavimentada, estávamos confusos, ainda achando que deveríamos seguir para oeste ao longo do rio. E fomos assim, seguindo uma deliciosa pista sinuosa de duas faixas ao longo de um cume com vista para vales verdes e plantações, com passagens ocasionais de caminhões. Ainda não tínhamos percebido que estávamos completamente perdidos, então nos divertíamos num lindo passeio de fim de tarde. O Uruguai aparecia de vez em quando à distância, ao Sul, exatamente onde ele deveria estar. As linhas roxas no Dingus e Dork continuavam a nos garantir que estávamos na direção correta. (Idiotas - eles e nós. Eles nos mostravam que estávamos andando no meio do rio - um ícone de uma motocicleta no meio de um campo azul - que talvez devesse nos alertar sobre a perda total de nossas máquinas. Michael nos diria mais tarde que, enquanto observava nossas migalhas, queria poder gritar para nós lá de cima, "Vocês estão perdidos!").
Enquanto seguíamos para uma pequena cidade chamada Itapiranga, o pavimento na estrada acabava mais uma vez, com as árvores fazendo uma sombra escura. Paramos e abrimos o mapa novamente. Agora sabíamos onde estávamos exatamente, podendo ver o quanto estávamos perdidos. Havíamos passado pela virada para a ponte algumas horas antes, e nesse momento estávamos no canto mais distante do Brasil, com o rio para nosso Sul e imediatamente a Oeste de nós, com a fronteira da Argentina correndo de Norte a Sul. Não havia estradas cruzando essa fronteira ou aquele rio - e eu sabia exatamente o que devíamos fazer.
"Vamos parar por aqui", disse, apontando para trás até a estrada para Itapiranga, "Era uma bela cidade - deve ter um hotel".
"Sim", Brutus disse, "Então amanhã..."
Cortei-o: "Dane-se amanhã - vamos colocar o hoje em primeiro lugar". (Roadcraft)
Como já havia nos levado de volta para a rua principal, apontei para uma placa, escrita em letras góticas "Hotel Mauá". Para uma cidade de 13000 pessoas, colocada "no fim da estrada" em vários sentidos, o hotel era absolutamente agradável: pequeno, austero e incrivelmente limpo, bem como se pode encontrar na Áustria rural por exemplo, com estacionamento coberto e seguro para as motos.
Notei dois restaurantes na cidade, e fomos para um ao ar livre, similar aos que você pode encontrar numa pequena cidade italiana. Alto falantes tocavam um híbrido de estilos brasileiros e do Oeste africano, e tive que pedir ao nosso garçom para anotar o nome dos artistas – entregando a ele meu notebook e fazendo-o entender sobre "música". Noite subtropical, bom hotel, jantar ao ar livre e música intrigante – agora tudo funcionava muito bem.
Enquanto estava na calçada em frente ao restaurante conversando com Carrie no celular (que como milagre funcionou perfeitamente naquele canto remoto do Brasil), Brutus falava português de chats com alguns moradores. Ele ficou sabendo que havia uma balsa - um barco direto de Itapiranga que poderia nos levar de manhã para o outro lado, sem termos que recuar várias horas. De lá poderíamos tentar seguir (com os mapas de papel, à moda antiga) para nossa fronteira, São Borja.
Na varanda do hotel, Brutus e eu arrumamos todos os nossos "aparelhos de mão" (ainda poderia ter feito uma turnê de grande nome, como já observei antes): telefone celular, telefone via satélite, rádio Nextel, dispositivo de localização por satélite ("olho nas migalhas" do Michael), GPS idiota, mapas de papel e câmera. (De forma verossímil, adicionamos também um copo de uísque e um maço de Red Apples como outros importantes dispositivos portáteis).
Em contraste com a exibição de alta tecnologia, Brutus ficou acordado até tarde com os mapas de papel, copiando até mesmo nome de bairros, distâncias e (quando possível), números de estradas em folhas que seriam colocadas no porta-mapas localizado no tanque da moto. (Esse é o tipo de GPS que chamo de "Pegue uma Caneta, Estúpido").
Até o amanhecer, da mesma forma em tantos daqueles longos dias de viagem, ingerimos um pouco de pão e café no hotel, carregamos as motos e dirigimo-nos para o desembarque da balsa. A balsa era apenas uma pequena embarcação movida por um motor localizado fora da borda da plataforma, mas que em alguns minutos nos levou através de toda a extensão do rio, que brilhava o azul por cima de seu marrom-enverdeado naquela manhã de sol. Estávamos imediatamente perdidos de novo.
Não havia ninguém ali, apenas algumas pequenas casas e uma rede de dois quarteirões de ruas estreitas, poeira marrom e rochas (cascalho não - rochas). Imediatamente recorremos a mais primitiva forma de GPS - encontrar uma pessoa dizendo repetidamente o nome do lugarejo mais próximo que estávamos tentando encontrar (no caso "Vista Gaúcha"), apontando para a estrada interrogativamente. Basicamente, como dois idiotas.
A única desvantagem desse método é que você precisa de pessoas para perguntar, e estas eram escassas ao longo da estrada de terra, indistinguíveis e que se confundiam com caminhos para fazendas que levavam a diferentes direções. Muita das vezes fazíamos uma pausa para considerar as opções e olhar para nossa bússola GPS ("os idiotas", como chamo rotineiramente esse equipamento, enquanto Brutus se referia a ela sarcasticamente como sua "bússola de mil dólares"). Não havia sinais de estradas pavimentadas - nenhum - e como já comentei anteriormente sobre essas faixas não sinalizadas (que também ocorrem na África ou México), mesmo quando você está no caminho certo, não tem como saber.
Havia certa ansiedade extra nesse dia, pois precisávamos chegar à fronteira em São Borja tão cedo quanto podíamos. O promotor da turnê havia conseguido um agente para nos encontrar por lá e nos ajudar com nossas "formalidades", e deveríamos chegar ao meio-dia. Havia ainda um longo caminho até Buenos Aires para os próximos dois dias.
Rapidamente encontramos uma verdade importante sobre o Brasil - várias verdades, de fato. Estávamos perdidos numa estrada de terra numa área rural isolada, porém Michael e eu muitas vezes já havíamos nos encontrado nessa exata situação nos Estados Unidos. À semelhança do que aconteceu em seguida, quando Brutus e eu buscamos nosso caminho para fora das "trilhas batidas" daquele bolsão rural isolado, estávamos em estradas duplas bem pavimentadas, com pouco trânsito, passando por uma linda paisagem.
Um detalhe: pela estrada de terra, perto do rio, vi um homem dirigindo um arado com dois bois, e menos de uma hora mais tarde, passamos por grandes fazendas com muitos tratores John Deere, grandes e modernos, e colheitadeiras verdes brilhantes com lâminas de sessenta metros. A agricultura de subsistência pode ser a realidade econômica em áreas isoladas, mas na mesma região, os elementos da Idade do Ferro coexistiram com a mecanização e urbanização em grande escala ao longo das principais estradas e cidades, muitas delas nos dias atuais. Brutus e eu vimos bolsões subdesenvolvidos no Brasil e na Argentina, mas vocês certamente não diriam que os países são subdesenvolvidos, muito pelo contrário.
A maioria das aventuras de moto pela América do Sul que li têm se preocupado por quais caminhos fazê-las - pilotos de maratonas percorrem a Rodovia Panamericana do Alaska à Terra do Fogo, por exemplo. Mas logo percebi que você pode fazer uma agradável viagem pela América do Sul. Essas estradas vermelhas finas, como mostradas nos mapas do Guia Quatro Rodas, foram a chave e, ao contrário de São Paulo e Rio de Janeiro, as cidades e municípios pequenos foram totalmente civilizados e acolhedores.
Minha própria definição da cápsula que alguns denominam de "Terceiro Mundo" é: "qualquer lugar onde o ar esteja impregnado por resíduos humanos" (o leitor poderá traduzir isso livremente). Tal definição inclui, necessariamente, grande parte da China, a África Subsariana e até mesmo partes das cidades do Sul da Europa rural na Itália e na Grécia, por exemplo. (Isso não significa que não amo alguns desses lugares - eu amo - apenas me refiro ao cheiro).
Na América Latina, só as grandes cidades parecem cair sob esse ranço - São Paulo, Rio e Cidade do México – e elas são os tais ímãs de esperança dos jovens. Pensadores mágicos. Eles sonham, ousam e têm esperança.
No final dos anos 90, visitei o México com bastante freqüência, e fiquei sabendo que, a cada dia, 1000 pessoas novas chegavam - deixando seus vilarejos e cidades em busca de um futuro melhor, carregando nada além de braços fortes e esperança. Mil pessoas por dia - como qualquer cidade poderia lidar com esse tipo de fluxo? Para seu crédito compassivo, a cidade do México tentou - trazendo eletricidade e água canalizada às crescentes favelas (em oposição a queimá-las , como fez o governo dos EUA na década de 1930) - mas nunca poderia ser o suficiente.
Numa megalópole confusa, que se expande diariamente para além de qualquer possibilidade igualitária de infra-estrutura, haverá o mau cheiro e o mau comportamento: o crime. Por um lado, as cidades são incapazes de fornecer as "facilidades" necessárias para seus novos cidadãos, enquanto o grande desraizamento e desamparo dos recém-chegados afasta os mesmos do sentido de senso de comunidade - de casa - que poderia governar, ou pelo menos moderar, o comportamento deles.
Tudo isso somado se torna uma ótima receita para um perfeito desastre - um ensopado de seus próprios sucos mal cheirosos.
Uma pequena cidade como Itapiranga não aparece nos guias turísticos. Mesmo nos recursos online, o máximo em informação encontrada é que Itapiranga é o "município mais ocidental do estado de Santa Catarina". No entanto era um lugar limpo, bonito e amigável, com acomodações totalmente adequadas e alimentação para os visitantes, e Itapiranga foi colocada ao final de estradas muito boas para motociclistas também.
Mas do que tudo, parecia um milagre termos encontrado Itapiranga apenas no fim daquele dia longo e muito cansativo. Não tínhamos lugar para ir - e ela estava lá.
Mágico.
Como dito no início, acredito que todos têm sua própria versão do pensamento mágico. A minha é "sonhar, ousar e ter esperança", numa vida que não é baseada na razão; é um tipo de fé – que me tornará capaz de realizar algo sobre o qual me atrevo a sonhar. Certa vez chamei isso de "Tentativismo", acreditando que se eu tentasse algo de forma insistente o bastante, aquilo terminaria por ceder e viria a acontecer. O fato é que essa abordagem às vezes funciona sem nenhuma prova empírica de sua veracidade. Lembro-me de uma conversa que tive depois que atropelei um cervo com minha moto (artigo "Every Road Has Its Toll", de junho de 2007). Após esse susto, fiz uma pesquisa bem séria sobre medidas defensivas, tais como simuladores de som dos cervos, que emitem um apito estridente que supostamente espantava os animais. Logo vi que aqueles dispositivos tinham sido ineficazes na melhor das hipóteses, e uma atração na verdade, na pior delas. Quando relatei isso a um amigo, ele me disse: "Bem, tenho estes em minha caminhonete e jamais atropelei um cervo".
Bem, isso liquida o assunto então. (Como um médico que recusava vínculos suspeitos entre vacinações e autismo: "O plural de 'anedota' não é 'dados').
Mas é claro que esse tipo de urdidura subjetiva é apenas uma variação do tema humano que traz desde trevos de quatro folhas e pulseiras curativas até templos para deuses do céu, como este em Petrópolis, Brasil.
No incrível âmbito das impossibilidades abraçadas pela fé humana (por definição, seja qual for a correta, as outras serão sempre "impossíveis"), parece que por mais estranhas que essas crenças se tornem, maiores serão os gritos de "intolerância" e fundamentos de "respeito".
Durante a parte norte-americana da turnê Time Machine, Michael e eu havíamos discutido esse assunto longamente durante nossos coquetéis e jantares pós-viagem - a escala e o poder do pensamento mágico. (Nossas conversas não são todas brincadeiras alegres ou profanação – às vezes trazem nomes de filósofos alemães e poetas metafísicos ingleses). O tema fé muitas vezes surgiu quando estávamos andando pelo sul do Tennessee, por exemplo, ou até mesmo pela Pensilvânia (ou em algum lugar no Sul, fora das cidades). Sentimos-nos oprimidos pelo enorme número de igrejas e seus símbolos, outdoors e adesivos, além da prevalência de "igrejas boutiques". Às vezes nos parecia que, a cada cruzamento rural, havia três ou quatro blocos de igrejas de concreto, a maioria marcada por diferentes estilos da cruz Batista.
"Cobrem impostos de todas elas", dizia Michael, e eu concordo - igrejas são produtos afinal, como o álcool e o tabaco, que prestam um serviço que alguns acham reconfortante, e outros acham condenável. Chamem de "imposto sobre o pecado".
Quanto à tolerância e respeito, concordamos que tolerância é algo necessário - pessoas podem acreditar na maior loucura fecal que escolham, mas não teremos certeza a respeito.
É difícil de acreditar naqueles que atribuem o poder espiritual de uma divindade a formações geológicas ou a artigos de vestuário (pense nos católicos, hassídicos, mórmons ou budistas), não tanto por sua "magia", mas por sua vaidade.
Os fundamentalistas de todas as espécies e os teóricos da conspiração são praticamente impossíveis de se respeitar, especialmente por pregarem a violência - a dor dos outros, o primeiro pecado mortal real.
Em termos simples da minha bússola moral (assim como Dingus, custou bem cara!), se os maiores males do indivíduo são dor, medo e preocupação, então é lógico que as piores coisas que podem infligir outro ser humano são dor, medo e preocupação.
(Uma parte admirável do "código de cavalheiros" que eu vi em algum lugar anos atrás era, "Um cavalheiro nunca inflige dor intencionalmente". Acho que isso deva ser da mesma forma para o medo e preocupação).
Não-crentes são sempre advertidos a "respeitar" as crenças dos outros, mas não são respeitados por sua vez. Da mesma forma, não acredito nem por um segundo que os mórmons "respeitam" as crenças da Cientologia, por exemplo, ou as Testemunhas de Jeová dão igual peso aos ensinamentos do profeta Maomé. Coloque dez crentes das religiões mais importantes do mundo em um círculo, e seus balões de pensamento vão mostrar o mesmo que o meu: "Você acredita nisso?"
Tenho medo de afirmar que a tolerância é o melhor que podemos oferecer. Pessoas assim só respeitam a si mesmas...
Mas vamos voltar ao passeio no tapete voador do pensamento mágico em ação, na ponte sobre o rio Uruguai entre o Brasil e a Argentina, localizada em São Borja. Seria nossa primeira fronteira sul-americana, e estávamos um pouco nervosos. (Bem, um pouco mais nervosos). Fomos recebidos na fronteira pelo agente promotor da turnê, Sérgio, um homem barbudo bem agradável, que falou o necessário em inglês, português e espanhol. Ele tinha um assistente do lado brasileiro e outro no lado argentino que faziam o trabalho com os papéis e fila de espera, o que tornava o processo muito mais fácil para mim e Brutus - tivemos apenas que esperar.
Durante um tempo, assistimos no monitor de um computador através de uma janela no escritório da alfândega argentina, imagens ao vivo do resgate dos mineiros no Chile. Para quem não estava incluído nos estimados um bilhão de pessoas em todo o mundo que assistiam ao evento ao vivo, a versão curta é que no início de agosto de 2010 uma mina de cobre notoriamente insegura desabou no Chile, prendendo trinta e três mineiros a três milhas da entrada. A colaboração tecnológica entre a NASA e a marinha chilena perfurou poços artesianos para ajudar os mineiros, entregando alimentos em primeiro lugar e e por onde puxaram os mesmos, um de cada vez através de tubos, numa subida íngreme de 15 minutos.
Nos dias anteriores, Brutus e eu sentimos que estávamos no fundo da América do Sul. (Nada como estar realmente perdido para aumentar essa sensação). Nesse ponto, também estávamos perto do Chile, tanto geograficamente quanto por essa aparição em nosso itinerário durante alguns dias. Por essas razões, a história se tornou ainda mais triste - mais parte do nosso mundo.
No processo burocrático em andamento que atualmente define nosso mundo, mesmo com três pessoas ao nosso lado, levou duas horas para que os funcionários comprovassem que todos os nossos documentos estavam em ordem e devidamente carimbados e assinados em três vias. (Sérgio nos disse que os controles argentinos de fronteira são os mais lentos e rigorosos de toda a América do Sul). Depois disso, estávamos livres para andarmos pelo país. Eram quatro da tarde e decidimos dirigir para o Sul durante algumas horas, buscando encontrar um hotel antes do anoitecer. O céu estava cinza, o ar fresco, e algumas chuvas dispersas começavam a aparecer, respingando em nossos pára-brisas.
(É claro que, em meados de outubro, é primavera no Hemisfério Sul, e tivemos tempo para nos acostumar mentalmente com isso - eu e Brutus havíamos tomado como certo que, como dirigiríamos para o Sul, o tempo se tornaria mais quente, quando obviamente o oposto era verdade. Tudo estava de cabeça para baixo!).
Muitas coisas foram imediatamente diferentes na Argentina. Dirigimos por toda a planície gramínea chamada Pampas, e a paisagem parecia com o oeste do Texas após um pouco de chuva - campos verdes planos estampados com ocasionais árvores do tipo mesquite. Uma rodovia de quatro faixas havia sido recuperada e em parte construída, mas nenhum trabalho recente parecia ter sido feito. O tráfego era quase que exclusivamente de caminhões nas duas pistas existentes, e que muitas das vezes tinham que ser ultrapassados em grupos de três ou quatro que se amontoavam atrás deles, como comboios esfumaçados. Mas pelo menos em zonas planas e abertas como aquelas, a visibilidade era perfeita para as ultrapassagens.
No início de nossas viagens brasileiras, os pedágios haviam sido uma constante interrupção, mas nas estradas pagas da Argentina, as motocicletas têm passagem livre. No entanto, fomos parados freqüentemente em barricadas com soldados e policiais, que dificultavam e paravam o tráfego. Nunca fomos questionados ou revistados, mas um monte de motoristas de caminhões e carros à nossa frente foram, alguns deles levados ao acostamento para uma análise mais aprofundada. Como outro indicador de mundo "subdesenvolvido" (leia-se "não-civilizado", eu acho), qualquer país que interfira nos movimentos de seus cidadãos e que concede aos seus policiais o direito de parar e revistar qualquer veículo que quiser, está corrompendo a liberdade. Os piores exemplos que encontrei nesses países foram na África Ocidental, China, norte do México e no sudoeste dos Estados Unidos. (O livro Borderlands, de Derek Lundy, se aprofunda em algo que eu mesmo vi - os abusos que se perpetuam nos EUA através de seus governos estaduais nas fronteiras, em nome de seus cidadãos: a "segurança interna").
Mesmo que não estivesse sido pessoalmente incomodado pelos guardas rodoviários, é claro que o tráfego ficava lento todas as vezes, e tínhamos que esperar. Os outros obstáculos que tivemos foram os muitos desvios por conta de construções, nos levando para locais enlameados, uma confusão escorregadia muita das vezes esburacadas e cheia de poças por causa das chuvas recentes. Ultrapassávamos os caminhões, que mais pareciam para nós como hipopótamos em banhos de lama. Logo nossas motos tiveram as partes inferiores pintadas de marrom, e a situação ainda era pior em lugares como este - no pátio de um posto de gasolina.
Encontramos refúgio durante a noite em uma cidade um pouco degradada na fronteira ao longo do rio Uruguai, Paso de Los Libres. Do outro lado do rio estava Uruguaiana, no Brasil, uma grande cidade com altos edifícios modernos e muitas luzes que era refletidas nas águas. Não se tratava de um contraste como Ciudad Juaréz - El Paso, mas a diferença era gritante.
Nosso hotel era um pouco surrado, localizado num arranha-céu chamado Alejandro I (aparentemente dedicado a Alexandre, O Grande, a julgar pela enorme escultura em baixo relevo na sala de jantar). O elevador antigo era pequeno, e tinha o portão de metal velho no estilo tesoura, o qual só utilizei uma vez, com a bagagem. A partir de então só usei as escadas. Não tive medo de andar nele, mas dava receio por uma razão - houve terremotos por lá. E quando despertei por um breve período às 5 da manhã, com minhas cortinas abertas, notei que a cidade inteira estava sem luz - um corte de energia - enquanto Uruguaiana brilhava refletindo na água. Definitivamente não usei mais o elevador depois disso.
O Alejandro I era um velho e exótico hotel, do tipo em que o cara da recepção lhe entrega as chaves juntamente com o controle remoto da TV. O carregador veio até nossos quartos para garantir que trabalhavam, nos deixando com um canal diferente em língua espanhola, que falava sobre o resgate bem sucedido dos mineiros - todos os trinta e três estavam de volta a superfície. Após mais de dois meses de escuridão, todos usavam óculos escuros, mas sorriam brilhantemente - todos barbeados e preparados para a comemoração. Enquanto olhava aquelas almas afortunadas reencontrando seus entes queridos, com uma música agitada tocando ao fundo, aquilo começava a me tocar, e logo as lágrimas rolaram do meu rosto. Até mesmo Brutus admitiu sentir lágrimas num tipo de tristeza materna.
O resgate já estava sendo chamado de "milagre", e se a palavra era adequada, era difícil argumentar. No entanto, aqueles que o chamaram de "ato da Divina Providência" estavam começando a se questionar como um dos personagens de Voltaire em Cândido: "Se Deus salvou trinta e três, porque é que, a cada ano desde 2000, uma média de trinta e quatro outros mineiros morrem nas minas do Chile?"
"Ah", diz a resposta, "O Diabo matou esses".
Brutus e eu seguimos nosso caminho para Buenos Aires, onde a rodovia de quatro pistas já estava pronta, com o tráfego ficando mais fácil. No entanto, o percurso se tornou mais difícil. Como qualquer área metropolitana, você não consegue prever quais informações irão te ajudar a fazer as viradas corretas - pode ser um número de rota ou um nome de cidade (mesmo uma que seja muito mais longe, e que esteja por coincidência na mesma direção na quel se está indo), ou você pode não conseguir absolutamente nada. Um conjunto de rampas numa estrada principal não mostravam nenhum sinal sequer, nos deixando na bússola e no instinto. Ambos falharam algumas vezes, mas acabamos seguindo nosso caminho para um único destino, o Campo & Polo Resort (sempre usando o sinal gráfico para "y" ou "and") - um clube de pólo!
Eu soube a partir da obra Strange Thigs Happen (do meu amigo Stewart Copeland), quando ele escreveu sobre um grande jogador de pólo, que a Argentina era o único lugar no mundo para se comprar pôneis para o esporte. Perto da cidade de Lujan, começamos a passar por vários haras enormes e clubes de pólo, chegando a nosso destino em meio a vários campos verdes e jardins exuberantes. Muito parecido com clubes de campo nos EUA ou Europa, o local oferecia um elegante hotel e restaurante mas, ao invés de campos de golfe, foi erguido em meio a campos de pólo.
E ao contrário da maioria dos clubes de campo dos EUA ou Europa, o Resort Campo & Polo ("campo" significa "field", então não sei por que é "field and polo") estava interessado em fazer as mudanças de óleo nas motos em seu adro.
Brutus conseguiu baldes de tamanhos perfeitos para drenar, e Michael saiu cedo com a van e com o motorista de Buenos Aires, trazendo nossa caixa de ferramentas, óleo e filtros que tínhamos encaminhado junto com o equipamento da banda. Fiquei contente em lidar com a parte mecânica da operação, tendo realizado muitas mudanças de óleo em minhas motocicletas ao longo dos anos. (As anotações que guardo sempre contam uma história interessante sobre os locais onde as mudanças de óleo e pneus foram feitas. Na turnê Time Machine, durante o verão e outono de 2010, a lista da primeira moto inclui Los Angeles, Albuquerque, Chicago, Cidade de Quebec, Toronto, Nashville, Las Vegas, St. Lois, Columbus, Nova Jersey e Lujan, Argentina. A lista da segunda inclui Toronto, Quebec, Omaha, Tulsa, Atlanta e Lujan, Argentina. Foi gratificante adicionar esse nome no final das duas listas - no sentido de um trabalho que vale a pena fazer, e numa localização muito incomum.
O motorista da nossa van nos proporcionou uma tour por Buenos Aires à nossa maneira, e apesar do dia nublado fundindo tudo numa luz cinza uniforme, a palavra que me ocorreu foi "monumental". Influências francesas, espanholas e italianas dominam os edifícios mais antigos, enquanto modernos arranha-céus foram adicionados com esculturas metálicas ardilosas, como a deslumbrante flor de metal polido gigante que se abria e fechava mecanicamente pela manhã e à noite. A principal avenida, 9 de Julho, é dita ser a mais larga do mundo, onde Brutus contou vinte e quatro faixas de tráfego.
O local para o show, infelizmente, estava longe de ser "monumental" - um estádio antigo com vestiários improvisados em trailers e banheiros portáteis. O público, como no Brasil, era grande e entusiasta (32.000 pessoas em São Paulo, 13.000 no Rio - onde tivemos um "show mágico" que ecoou o de 2002, que se tornou nosso DVD Rush In Rio - e 10.000 em Buenos Aires). Mas o maior show, em todos os sentidos, nos aguardava em Santiago.
Eu e Brutus - e todos os outros - estávamos preocupados se chegaríamos a tempo. Só tivemos um dia de folga, e teríamos que andar 1000 quilômetros (600 milhas) no primeiro dia até Mendonza, Argentina, estando perto o suficiente da fronteira com o Chile, para ter a certeza de chegar a Santiago bem e cedo.
Ainda no escuro e antes do nascer do Sol, dirigimos através dos Pampas novamente...
Em Buenos Aires, Brutus e eu ouvimos dizer que "alguém" (provavelmente o promotor) estava mandando um carro para nos acompanhar por toda a Argentina. Brutus avisou, "Apenas certifique-se de que não iremos ver o cara - no hotel ou na estrada". Ele e eu concordamos, "Não queremos ficar como Ewan e Charley" (referindo-se aos atores Ewan McGregor e Charley Boorman, que fizeram duas viagens incríveis de moto pelo mundo - Long Way Round - e da Escócia ao sul da África - Long Way Down - onde eles viajaram com uma van que transportava uma equipe de filmagem, médicos e segurança). Na verdade, é claro que queríamos estar como Ewan e Charley (quem não queria?), mas sem o "cortejo".
Sabendo que havia ainda um longo caminho a percorrer, atacamos o dia dessa forma. Brutus e eu caímos no ritmo que havíamos estabelecido em nossas primeiras viagens de moto juntos - mudando a liderança em cada parada para abastecer, e dificilmente parando para outra coisa. Muitas vezes nessas longas viagens usamos nossos galões de reposição de gasolina para chegar aos postos mais distantes, e foi por isso que carregamo-los.
Numa parada disse para Brutus que essa viagem me lembrava uma do começo dessa turnê, com Michael no Kansas ocidental. Na época havia descrito essa para Michael como "Plana, inexpressiva e rápida", e Michael disparou, "Parece minha ex-namorada".
Eu ri e disse: "É por isso que eu quero te manter por perto agora!".
O objetivo era estar em Mendonza antes de escurecer, e chegamos com uma hora de antecedência. Brutus não havia mencionado nada sobre as acomodações por lá (na semana anterior ele havia me enviado um monte de sites para ver, mas estando profundamente dentro da turnê americana naquele momento, não tive tempo de olhar). Ao longo do caminho naquele dia, ele me disse alguma coisa como "Wine Lodge", e a mulher com a qual havia conversado ao telefone sobre o trajeto tinha dito para ele para procurar uma "estrada de terra".
Brutus falou para mim, "Estou sempre procurando por isso".
(Claro, ela se referiu a uma "estrada de terra").
Após nosso mais longo dia até então, com mais de 1000 quilômetros percorridos, 633 milhas, estávamos completamente despreparados para sermos esmagados pelo esplendor do Cavas Wine Lodge, uma maravilha de arquitetura no estilo adobe com quatorze casitas separadas, em meio a vinhedos organizados com os Andes listrados de neve a Oeste. Nossas casitas eram perfeitamente equipadas, gesso em pátina, pedras naturais e encanamento ultramoderno, além de iluminação e mobiliário.
Fiquei no meio do chão de pedra, aos poucos tirando minhas roupas de motociclista entre minhas bagagens espalhadas, pensando, "Isso seria lindo - se eu não estivesse tão cansado para apreciar!". Conforme adicionei em meu diário, "Ainda assim - melhor do que estar cansado em uma lixeira!".
Depois de um cochilo, uma refeição excelente e um sono curto e nervoso, levantamos às 5 da manhã para arrumar as motos com um pouco de pão e café, estabelecendo na primeira luz do dia a viagem final.
(Um pós-escrito sobre o Cavas Wine Lodge, que tanto me impressionou e sobre o qual estava delirando com algumas pessoas, recomendando a amigos que vivem em tempos parciais nos países vizinhos ao Chile. Depois de Brutus e eu retornarmos para casa, ele descobriu algumas histórias perturbadoras sobre grupos armados que roubam hóspedes em hotéis de luxo naquela área, incluindo o Cavas Wine Lodge. Parece que tal evento ocorreu pelo menos 22 vezes nos últimos anos. Brutus disse: "Eu diria que evitamos outra bala lá - mesmo sem saber disso". Então acho melhor qualificar novamente minha recomendação).
Brutus e eu esperávamos que aquela manhã fosse fria, pois estávamos indo para acima de 10000 pés - por isso usávamos basicamente tudo que tínhamos: ceroulas, meias, coletes e luvas térmicas e, sobretudo, capas de chuva.
A subida começou no lado argentino delicadamente, com muitas retas para cruzar e poucos caminhões naquela manhã de domingo. Logo estávamos acima da linha das árvores, então quase estéreis, com rochas cobertas por neve nos picos mais altos, onde poderíamos vislumbrar o ombro branco do Aconcágua, a 6992 metros - 22841 pés, o ponto mais alto das Américas ou de qualquer lugar fora do Himalaia.
A fronteira ficava próxima do cume do local, Los Libertaderos, a um pouco mais de 10000 pés. O representante do promotor na fronteira desta vez foi um jovem de óculos de fala mansa chamado Carlos, que traduziu o soldado me perguntando se eu era "baterista". Carlos me contou que um jornal de Santiago do dia anterior noticiou que eu estava chegando para tocar de maneira incomum, e um casal de fãs apareceu. Eu apertei a mão deles e os cumprimentei, mas quando começaram a tirar fotos com suas câmeras portáteis várias e várias vezes Brutus e eu nos despedimos deles. Já era o suficiente, e já estávamos muito nervosos mesmo sem qualquer problema extra.
Cruzar fronteiras é sempre uma prova incerta para qualquer um, mesmo entre o Canadá e os Estados Unidos, e fiz isso muitas vezes. No entanto, em contraste com a demora de duas horas para entrarmos na Argentina, dessa vez a burocracia para nós e nossas motocicletas demorou apenas 20 minutos. Enquanto isso, Carlos me explicou que o soldado estava dizendo para ele que seríamos escoltados em todo o caminho até a cidade - 150 km. Mais cedo perguntamos a Michael se alguém poderia nos encontrar fora da cidade talvez, se eles poderiam nos guiar para o estádio (as motos seguiriam para casa de lá, junto com o equipamento da banda, então precisávamos entregá-las direto no estádio), mas parecia que os oficiais estavam "reagindo negativamente".
Logo entendi que não haveria saída educada para essa situação, então seguimos uma picape 4 X 4 da polícia, nos afastando fronteira. Brutus e eu paramos para "fotografias de ação" no topo do ziguezague íngreme retratado no início desse artigo, então desci à frente deles, me lançando naquelas curvas apertadas da forma que elas queriam, com pulsação de escalada. Quando a estrada se endireitou, deixei escapar uma respiração profunda, parando minha moto e esperando por uma fotografia de Brutus enquanto pilotava. A picape parou do meu lado e um dos policiais se inclinou para fora, acenando com a mão para baixo dizendo: "Piano! Piano!".
Suponho que ele não estava sugerindo que eu devesse mudar de instrumento, mas que eu deveria diminuir a velocidade (a palavra realmente significa "mais leve, com pouca força"), como se estivesse explicando que nossas motos eram muito rápidas para o veículo deles.
Bem, sim... mas não faz mal. Aceite o inevitável.
Com a estrada descendo e se abrindo em bosques com arbustos e pequenas cidades, fomos apanhados por um outro grupo de escolta - dois soldados no estilo carabinieri em pequenas motos sujas - e a picape voltou dali.
Eles nos levaram para os limites da cidade, nos deixando num pedágio. O atendente se inclinou para fora e me perguntou: "Baterista?". Eu concordei e ele puxou o celular com câmera para comemorar o evento. Dois agentes de Santiago em grandes motos BMW assumiram a partir dali, nos levando para a bela cidade, com os Andes congelados ainda visíveis a Leste.
Finalmente estávamos entrando no estádio, e estacionamos num túnel lá dentro. Brutus e eu saímos das motos lamacentas e nos abraçamos aliviados. Havíamos sobrevivido a 5000 quilômetros, 3000 milhas - e fizemos isso entre todos os shows. Nosso trabalho havia sido concluído.
Bem, não o meu exatamente, porque agora, finalmente, havíamos chegado ao show final...
Já havia decidido que queria mais uma fotografia para completar todas as cenas de moto que havia feito: uma do palco. Em 36 anos de turnês, nunca havia feito uma fotografia assim, e pensei que esta poderia ser o complemento perfeito. Pouco antes do show, pedi ao Michael que levasse minha câmera para fora do palco e que desse ao meu técnico de bateria, Gump, com as instruções de me passar antes de tocarmos "Stick It Out". Essa foi a quarta música, depois de "The Spirit of Radio", "Time Stand Still" e "Presto" e, no ponto onde Geddy conversa com o público pela primeira vez, eles foram iluminados, para que cada um de nós pudesse ver todos eles.
Quando conversei com meus companheiros de banda durante a passagem de som, fiquei sabendo que eles também haviam assistido o resgate dos mineiros chilenos. Geddy planejou dedicar a canção "Stick It Out" a eles, enquanto uma foto dos mesmos apareceria no telão gigante atrás de nós. Além disso, a guitarra de Alex seria decorada com o número simbólico do resgate, "33".
Então tudo isso fez parte do "fundo" dessa foto, a magia invisível mas certamente sentida, em tantos rostos sorridentes entre as 36.000 pessoas. Os flashes, a bandeira chilena no meio, um cartaz hilariante à esquerda e outro à direita que eu e Michael tivemos que ampliar e melhorar. Ele mostra de forma comovente: "All my life / For Rush".
(A minha também, amigo – a minha também).
Ao fim de quarenta e quatro shows, para mim, meus companheiros de banda e nossa equipe incrível e, no final de 23.132 milhas de moto para mim e meus companheiros de estrada Michael e Brutus, Alex, Geddy e eu (sentado, no meu caso) pudemos olhar do palco para a torcida, exigente, cantando muito e vendo, ouvindo e sentindo... o poder do pensamento mágico.
Fonte : © 2010 - Rush Fã-Clube Brasil
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